Mirada, a potência dos encontros

Escrito por Eduardo Nunomura para Farafafa.

Cena da peça
Cena da peça «Teatro Amazonas» – Foto: Tristan Perez-Martin

O teatro é a arte do encontro, por mais chavão que a frase soe. Mesmo que artistas tenham se desdobrado para manter, durante a pandemia, os espetáculos cênicos em formatos híbridos, transmitidos por streaming ao vivo ou de forma gravada, nada se compara à alquimia do olho-no-olho entre plateia e artistas. O Festival Mirada, encerrado no domingo (18), revelou-se como o encontro em múltiplas possibilidades: por sua potência, pela diversidade das obras, pelos rompimentos estéticos e conceituais, por negar ou rever a história imposta, por permitir a todos respirar em seu sentido mais amplo.

Organizado minuciosa e extraordinariamente pela unidade Sesc Santos, o festival reuniu produções ibero-americanas num momento crucial para o Brasil. O projeto colonialista, talvez o nó górdio das sociedades modernas, está em curso e sendo colocado à prova, justamente quando o País celebra (ou deveria tentar refletir sobre) o Bicentenário da Independência. Jair Bolsonaro, cujas pretensões para se reeleger parecem um navio num destino sem volta rumo ao naufrágio, era a presença non-grata do Festival Mirada, como em tantos outros eventos culturais. Mas o que ele representa em essência, o projeto colonialista, continua em pleno vigor, no ano de 2022.

Embora o país homenageado fosse Portugal, o Brasil que sedia o festival ganhou uma centralidade a mais nessa edição. Foram apresentadas algumas obras de outros países que olham para o Brasil e refletem qual é o nosso papel no mundo. Uma delas se impôs por inúmeras razões: Teatro Amazonas, da dupla Azkona & Toloza. Ovacionados ao fim da apresentação no sábado, no Teatro Guarany, no centro de Santos, a coreógrafa Laida Azkona Goñi e o videoartista Txalo Toloza-Fernández, mostram como a Amazônia é hoje o que todo o território brasileiro foi para os portugueses no século 16, que ocuparam apenas as beiras do nosso litoral: um mero projeto de colonização.

Espetáculo em formato de teatro documental, em que Laida e Txalo se valem da técnica do verbatim, eles deixam claro que não são atores, e estão reproduzindo palavras e tonalidades de vozes de personagens da própria região amazônica que visitaram recentemente. “Os desertos são os lugares onde o capitalismo talvez seja mais duro, onde não há nada e ninguém vive”, diz Txalo. “Os projetos de desenvolvimento colonial e os de agora precisam dos desertos para legitimarem a sua entrada”, complementa Laida. Isso ocorreu no Deserto do Atacama, no Chile, onde a dupla encontrou inspiração para produzir o espetáculo Extraños Mares Arden (2014), na Patagônia argentina subtraída por milionários, que gerou a montagem Tierras Del Sud (2018), e agora no “deserto verde”, como também é conhecida a Amazônia. Os três espetáculos formam uma trilogia que se encerra com uma particularidade.

“Dos três territórios, a Amazônia atualmente é o lugar mais violento, porque há pessoas sendo assassinadas diariamente. Mas há também a violência da pobreza, da negação das culturais locais, e é muito mais dramático”, acrescenta Txalo, ao ser questionado se podia comparar as localidades das obras da trilogia. Teatro Amazonas começa sob um palco limpo e vai, lentamente, ganhando formas lúdicas que representarão as matas e construções. Didaticamente, eles falam de inúmeros projetos de colonização e exploração predatória da floresta, como a Fordlândia (PA), o projeto Jari (AP) e o próprio Teatro Amazonas (AM), da morte de lideranças defensoras da floresta, como Chico Mendes e Dorothy Stang. Ao final, o espetáculo mostra que vozes subjugadas da própria região, como os povos indígenas, estão se fortalecendo para reagir a esse processo colonizador que nunca foi interrompido.

O irônico é que a montagem Teatro Amazonas foi produzida por uma dupla de estrangeiros: Laida é espanhola e Txalo, chileno. Questionados como tem sido a reação do público em relação a essa obra que estreou há dois anos, no Chile, e já rodou palcos europeus, mas parece feita sob medida para o Brasil de Bolsonaro, Laida se adianta para responder. Na Europa, quando o espetáculo foi encenado, as pessoas diziam a eles: “A peça é muito interessante, eu não sabia disso, e no dia seguinte afirmam que levantaram pensando sobre o tema”. E Txalo arremata: “Quando apresentamos na América Latina, as pessoas nos dizem que não é só importante, mas urgente.”