De Inês Nadais para Publico, Portugal.
Das etnoficções multimédia do Teatro Mapa à crueza documental, mas nem por isso menos poética, da dupla Azkona&Toloza, a maior floresta tropical do planeta tornou-se um tópico teatral inescapável.
O cheiro a terra, a seiva e a flores também pode ser intenso a 4000 quilómetros de Manaus. Aqui, a floresta é de palavras — a potência escandalosa de Antonin Artaud inseminando com fúria fragmentos de Davi Kopenawa ou Clarice Lispector —, mas a fertilidade não é menos exuberante do que na maior floresta tropical do planeta, e até as plantas, ou melhor, “sobretudo asplantas”, estão contra Bolsonaro. Uns metros adiante, a psicóloga e activista indígena Geni Núñez equipara a devastação da monocultura à violência da monogamia, e à noite, no mesmo palco, a “rapeira” ameríndia Brisa Flow resume numa rima uns bons séculos de espoliação e genocídio: “Debaixo do concreto ainda é floresta/ é o que me resta.” (Entretanto, na mais esclarecida e cuidada livraria da cidade, o tom é peremptório: “Ailton Krenak é o maior pensador brasileiro vivo.”)
São cenas da sexta edição do Mirada — Festival Ibero-Americano de Artes Cénicas, evento-charneira do calendário teatral brasileiro, que em Setembro voltou a atracar em Santos, o maior porto da América Latina. São cenas que dão conta de uma obsessão em curso: as veias abertas da Amazónia encharcando os palcos latino-americanos de sangue, mas também de fulgor e poesia. Da Colômbia ao Chile, com o Brasil de permeio.
Coube à instalação TheAÇtrumcoRpusmUnDi — um campo de forças vivo, com cintilantes activações diárias, proposto pelos curadores Ricardo Muniz Fernandes, Christine Greiner e Ana Kiffer — criar um ecossistema epistemológico, filosófico, propício à germinação do tópico (aqui utópico, ali distópico) da Amazónia. Como uma estufa com as condições certas de temperatura e humidade para fazer desabrochar as fantasmagorias multimédia que o Mapa Teatro dispara, com flechas de verdade, em La Luna en el Amazonas, ou a realidade nua e crua da carnificina que a dupla Azkona & Toloza reconstitui, com insuspeitadapoesia, em Teatro Amazonas. Para uns e para outros, a Amazónia foi um chamamento — mas não um chamamento natural, porque é território em que se sentem radicalmente, humildemente, estrangeiros.
(…)
Um laboratório da imaginação.
Madeireiros, garimpeiros, seringueiros; caçadores, predadores, ditadores; missionários, legionários, mercenários; traficantes, migrantes, agro-negociantes. Um cineasta “aventureiro” (como o título português de um dos seus filmes “sul-americanos”). Uma bailarina, um artista visual, um antropólogo. Todos forasteiros. O que fazem eles na Amazónia? O que fazem eles emTeatro Amazonas, o espectáculo com que a basca Laida Azkona (a bailarina) e o chileno Txalo Toloza (o artista visual), assessorados por Leonardo Gamboa (o antropólogo), encerram a sua Trilogia do Pacífico, após Extraños Mares Arden (2014) e Tierras del Sud (2018) — este último apresentado no último Festival de Almada?
Filtradas pelas vozes e pelos gestos de Laida e Txalo, contraditadas pelos testemunhos de indígenas, indigenistas, activistas ou simples residentes, todas estas instâncias sem as quais não é possível dar conta do aqui e agora da incomensurável Amazónia brasileira vão construindo à nossa frente uma selva vermelha e verde — “uma selva bonita, bem iluminada, que dá prazer contemplar; não uma selva morta, porque a morte já lá a puseram os outros”, diz a dupla ao Ípsilon. Terceiro capítulo de um ciclo sobre o colonialismo sul-americano e suas deflagrações necropolíticas contemporâneas, Teatro Amazonas nasceu a 2 de Janeiro de 2019, quando os Azkona & Toloza souberamda carta aberta que três caciques indígenas dirigiram, em nome dos povos aruak, baniwa e apuriña, ao recém-empossado Jair Bolsonaro: “Já fomos dizimados, tutelados e vítimas de política integracionista de governos e do Estado Nacional Brasileiro, por isso vimos em público afirmar que não aceitamos mais política de integração, política de tutela e não queremos ser dizimados por meios de novas acções.”
Foi um portal que se abriu. Habituados a criações longas e imersivas, preciedidas de pelo menos um ano de investigação, Laida e Txalo mergulharam a fundo “numa selva documental”, mastigando um arsenal de “reportagens, documentários, romances, poesia, teses de doutoramento” que os deixou suficientemente nutridos para a viagem física de um mês que depois empreenderam, direcção Manaus. Tudo isso está nas entrelinhas do que narram em cena, “não como antropólogos, sociólogos, historiadores ou jornalistas, mas enquanto artistas”: uma história que começa com a descoberta do rio Amazonas por Francisco de Orellana, em 1542, e que atravessa cinco séculos de predação até chegar, milhões de mortes depois, aos nossos dias de assassinatos cirúrgicos, usurpação de terras indígenas, desmatamento e agro-negócio. Pelo meio, mas não serve de alívio, há ópera, um delírio de Brian Sweeney Fitzgerald, aliás Fitzcarraldo, e outro de Werner Herzog.
Teatro Amazonas é um relato da Amazónia como “zona de sacrifício”, para usar o termo que no Chile designa as regiões submetidas pelo Governo a um desgaste excepcional, em nome do interesse público. Ou seja, “um relato do progresso, essa ideia eufemística que pressupõe que vamos avançando sem que nunca ninguém se pergunte para onde”. E um relato tanto quanto possível (mas às vezes é impossível) decantado de ideologia. “Não somos activistas. O que fazemos é traçar linhas — cronológicas, visuais, históricas, temáticas — entre informações. O texto é descritivo. Não exploramos as emoções, não levamos o espectador para cima ou para baixo. Ele é que decide o que fazer com o assunto. Por exemplo: instalar a [estrada] Transamazónica seguramente produziu uma grande barbárie, mas não vivemos lá, não somos nós quem tem de dizer se se ganhou ou se se perdeu… Mas podemos dizer que ela fez com que Manaus se enchesse de favelas de gente que ali foi parar, convertendo-se em mão-de-obra barata e morrendo de fome como não morria de fome na aldeia de onde saiu…”, aponta Txalo.
A questão do lugar de fala, de resto, acompanha-os desde que se afastaram de uma linha de trabalho mais autobiográfica. Mas é clara a posição que ocupam, diz Laida, e não abdicam dela: “Quando estávamos na Argentina, uma mulher, branca, perguntou-nos por que é que tínhamos ido ali levantar os problemas ‘deles’ se em Espanha, onde vivemos, há a questão das valas comuns [da Guerra Civil]? A resposta que sempre damos é que não estamos a falar ‘deles’, mas de nós. De uma relação de poder em que a Europa tem uma responsabilidade enorme, de estruturas coloniais que nos constroem, e que temos, por necessidade vital, de desconstruir.” Como único protocolo, o respeito. “Tentamos seguir o que ouvimos da [activista mapuche] Moira Millán: ‘ Não nos folclorizem, como é habitual no Ocidente; tratem-nos como seres políticos.’ Deixamos claro que estamos a reproduzir testemunhos, não a representá-los. Certo, pode sempre aparecer alguém a dizer: ‘Tu, mulher branca, não tens direito a falar disto’. E eu responderei que sobre as coisas importantes temos de falar todos juntos.”
Como os dois episódios anteriores da trilogia, Teatro Amazonas foi uma aprendizagem. Que os deixou “arrasados, porque a Amazónia é um desastre violento e ininterrupto”. Cedendo à emoção que não admitem em palco, Txalo diz que é o tipo de aprendizagem de que talvez nunca venha a recompor-se. “Aprendi três coisas incríveis. Que para muitos povos originários o território não é geográfico, e por isso as nações podem sobrepor-se, coexistir no mesmo espaço. Que se me dizes que os seres humanos quando vão à selva se transformam em jaguares e assim vagueiam durante três meses, eu tenho de entender que é mesmo assim, que não é mito, que não é literatura. E que para muitas tribos amazónicas o verde o azul são a mesma cor. Enquanto artista visual, é um conceito que me esmaga. Que me esmaga e que me emociona muitíssimo; que me faz tremer a voz, que me faz chorar.” Também Rolf e Heidi Abderhalden continuam tocados pela Amazónia. Vão lá voltar. “Acabámos de eleger um Presidente [Gustavo Petro], de esquerda, pela primeira vez. No seu discurso de tomada de posse, propôs aos credores que abatam a dívida externa dos países do Sul para que em troca estes preservem a Amazónia. É uma ideia incrível Queremos trabalhar sobre esse discurso, sobre o que implicaria enquanto laboratório de imaginação social, política, geopolítica.” Entretanto, no Brasil, a imaginação sobre a Amazónia está suspensa das eleições. Porventura indiferente à ficção, a realidade segue dentro de momentos.